Em Portugal, ao longo da última década, rejeitámos inúmeras solicitações para “gerar” créditos de carbono (CC). As razões: a inexistência de um mercado estabelecido e a maioria das empresas não têm desenhados roteiros rumo à neutralidade carbónica. Hoje ambas as premissas estão mais perto de se tornar realidade.
O grande benefício de um mercado voluntário de carbono (MVC) é a atribuição de uma “valorização” à redução de emissões de GEE (ou ao sequestro dos mesmos), que é tida em conta pelos agentes na tomada de decisão.
Um MVC baseia-se na assunção voluntária, por parte de empresas, de objetivos de redução de emissões ou de contribuições financeiras que podem ter vários propósitos: ESG, preparação para o mercado obrigatório ou simplesmente “marketing”.
No entanto, a procura de CC no mercado deve obedecer a uma estratégia pensada, com ênfase na redução das emissões próprias e da cadeia de valor, na qual o acesso ao MVC é apenas um dos instrumentos.
O documento agora proposto para consulta pública sobre a criação de um MVP tem algumas virtudes, mas também oportunidades de melhoria.
A explicitação de vários princípios fundamentais como “Adicionalidade” (a noção de que uma atividade de mitigação ou sequestro não existiria na ausência do incentivo adicional criado pelos CC), a “Integridade e Qualidade” ou a “Conceção de um prémio para créditos com mais-valias específicas (Carbono+)” são elementos positivos na proposta apresentada.
No entanto, o decreto proposto ficou curto noutros aspetos, dos quais sublinhamos 3 muito importantes:
O primeiro é o facto deste documento privilegiar, pelo menos nesta fase inicial, o sequestro florestal em detrimento das condições das “claims” associadas. Todos os projetos de sequestro (normalmente de carácter florestal) implicam um potencial risco: o da reversão do sequestro.
Uma análise do histórico dos gráficos de emissões nacionais de Portugal mostra que, quando ocorreram os fogos florestais em 2017, em 2003 ou 2005, as emissões nacionais explodiram com a combustão do carbono sequestrado na nossa floresta. Dada a vulnerabilidade desse ativo, a maioria dos sistemas de carbono instituem a criação de bolsas (“buffer pools”) nas quais são colocadas percentagens dos créditos gerados em função de uma avaliação de risco de cada metodologia de projeto. Essas bolsas são utilizadas como garantia no caso de reversões. Tudo isto está previsto no decreto do nosso MVC. Contudo, essa bolsa dificilmente conseguirá garantir a proteção face a riscos altamente correlacionados e sistémicos. O que acontecerá se existir outro ano catastrófico como o de 2017? Se a bolsa se exaurir, como poderá o regulador (APA) comprar créditos voluntários no mercado de carbono? E o que fazer com as “claims” das empresas que compraram os créditos que se “queimaram”?
Existe atualmente uma enorme discussão sobre a validade das afirmações ambientais no mercado internacional voluntário e sobre a credibilidade das garantias que podem ser colocadas sobre o sequestro florestal. Nenhuma das 2 está totalmente refletida nesta proposta.
Um segundo aspeto crítico é a ausência (quase integral) da menção ao uso de tecnologia no desenvolvimento deste MVC. O documento menciona uma infraestrutura de Monitoração, Reporte e Verificação independente de mercado muito similar ao existente na UNFCCC e, neste caso, os maiores custos em sistemas deste tipo são justamente os de validação e verificação de emissões. Porque não darmos um passo mais à frente e incluirmos neste projeto um sistema de MRV suportado em tecnologia, de forma a reduzir custos com verificadores independentes que não têm, nos sistemas internacionais, provado serem realmente nem “verificadores” nem “independentes”. A capacitação de uma entidade nacional pública de monitorização do sequestro florestal usando meios tecnológicos existentes seria um ponto central para garantir a eficácia do sistema, num país em que será difícil encontrar economias de escala para justificar a existência de terceiras partes frágeis e inexperientes.
Finalmente, há ainda neste decreto uma oportunidade perdida que pode ser explorada: o armazenamento de CO2 não se deverá cingir à floresta. A floresta arde e o espaço é limitado para o seu crescimento. A solução passa pela utilização da floresta como se se tratasse de um terreno agrícola. Fomentar a plantação de árvores mas também o seu “cultivo” até ao seu corte e replantação. As árvores depois de cortadas podem continuar a trazer benefícios ao ecossistema. Como funciona? Através do conceito “Carbon Capture & Storage“. A “captura” é efetuada de forma eficiente através das árvores que absorvem o CO2 da atmosfera. O “armazenamento” é garantido através da utilização da madeira nas cidades em forma de edifícios, mobiliário ou outras soluções duráveis com base de carbono natural.
De uma forma geral, sentimos que estamos perante uma enorme oportunidade para criar um instrumento que poderá ser utilizado, entre outros aspetos, como um instrumento de política climática. Tal poderá acontecer através do incentivo ao crescimento de áreas de negócio profundamente correlacionadas com o desenvolvimento sustentável, usando os ativos de carbono como cofinanciamento dessas mesmas atividades. Para que tal aconteça é preciso um foco maior no comprador, na simplificação e digitalização do sistema assim como a inclusão da noção que a floresta não é o único local, nem provavelmente o melhor sítio, para armazenar CO2.